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Nota Técnica - 2020 - Junho - Número 75 - Disoc Vulnerabilidades das Trabalhadoras Domésticas no Contexto da Pandemia de Covid-19 No Brasil
Autores: Luana Pinheiro, Carolina Tokarski e Marcia Vasconcelos
No Brasil, o primeiro caso foi oficialmente reconhecido em 25 de fevereiro, na cidade de São Paulo – de um homem que havia recém-regressado da Itália, então foco da pandemia na Europa.3 A primeira morte, contudo, aconteceu em 17 de março, na zona sul de São Paulo, um homem que trabalhava como porteiro, no bairro Paraíso. No Rio de Janeiro, a primeira morte por Covid-19 registrada foi de uma trabalhadora doméstica que trabalhava em uma residência no bairro Leblon e contraiu a doença de sua empregadora, que também havia recém-regressado de viagem à Itália. Não é coincidência que o vírus tenha entrado no Brasil por meio das populações de mais alta renda, com recursos ou condições de empregabilidade suficientes para viajarem ao exterior, e, ao mesmo tempo, que as primeiras mortes tenham sido de trabalhadores que ocupam posições precárias, pouco reconhecidas e valorizadas e que prestam serviços relacionados aos cuidados às camadas mais abastadas. De fato, o trabalho doméstico e de cuidados pressupõe a existência de uma significativa desigualdade de renda entre quem oferece a vaga de emprego e quem a ocupa, pois a remuneração do trabalhador não é paga pelo lucro de um empreendimento, mas pela renda pessoal de uma outra pessoa física. E é nessa desigualdade que se assenta boa parte das vulnerabilidades do trabalho doméstico e de cuidados no Brasil (mas também no resto do mundo), agravadas nas condições da pandemia da Covid-19. As trabalhadoras domésticas representam, hoje, cerca de 6 milhões de mulheres no Brasil, o que corresponde a quase 15% das trabalhadoras ocupadas (10% das brancas e 18,6% das negras). O emprego doméstico se revela, portanto, de enorme importância não apenas para um conjunto particular de mulheres, que encontra nesta profissão uma de suas únicas alternativas de renda, mas também para a organização da sociedade brasileira. Isso porque, ainda que o trabalho de cuidados e de reprodução da vida seja de responsabilidade ampla – de famílias, do Estado e do mercado –, é forçoso reconhecer que, no Brasil, retirando-se um insuficiente esforço de oferta de creches públicas, praticamente inexistem políticas públicas ou iniciativas empresariais destinadas a compartilhar os cuidados e torná-los uma responsabilidade social. O trabalho doméstico e de cuidados segue, assim, sendo de responsabilidade das famílias, e, nestas, das mulheres (elas integrantes das próprias famílias ou contratadas para este fim). No caso da contratação de trabalho doméstico, são mulheres, em geral, negras e pobres, com baixa escolaridade, que assumem o trabalho doméstico de famílias mais abastadas, possibilitando que os homens sigam se desresponsabilizando por este trabalho e que outras mulheres, em geral brancas e com maiores recursos, possam “resolver” sua sobrecarga de trabalho doméstico, tanto para a entrada no mercado de trabalho quanto para outros fins, entre os quais apaziguar eventuais tensões e conflitos causados por um estremecimento da divisão sexual tradicional do trabalho. A terceirização do trabalho doméstico cria, portanto, uma oposição de classe e raça entre as próprias mulheres, ao mesmo tempo que se configura em uma solução privada para um problema público, sendo, portanto, acessível apenas àquelas famílias com mais renda. Não são poucos os estudos, as reflexões e as denúncias que apontam para a precariedade do trabalho doméstico no Brasil.4 A vulnerabilidade desta categoria tem, na falta de proteção social, uma de suas marcas mais fortes e permanentes. Os dados do primeiro trimestre da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2020 mostram que apenas 28% dos(as) trabalhadores(as) domésticos(as) do país possuíam carteira de trabalho assinada.5 Em 1995, essa proporção era de 18%. Ou seja, em 25 anos, fomos capazes de aumentar em apenas 10 pontos percentuais (p.p.) a formalização do emprego doméstico, mesmo considerando a implementação de medidas e incentivos fiscais voltados à formalização. A informalidade permanente significa que a essas trabalhadoras não são devidos os direitos trabalhistas (como férias, décimo terceiro salário, seguro-desemprego ou horas extras), tampouco os direitos previdenciários, que procuram proteger os trabalhadores em condições em que sua capacidade laboral esteja diminuída (maternidade, doença, velhice). Mas não é só aí que se situa a precariedade do emprego doméstico. É preciso lembrar dos abusos e dos assédios morais e sexuais a que essas trabalhadoras estão submetidas, da desvalorização e da estigmatização social da profissão, das jornadas exaustivas e mal remuneradas (as trabalhadoras domésticas, ainda hoje, recebem, em média, menos que um salário mínimo mensal), das longas trajetórias percorridas em transportes públicos lotados no deslocamento casa-trabalho-casa, e na “troca” cruel de tempo e esforços que dedicam ao cuidado dos outros em detrimento do tempo e da “energia” que não possuem para o cuidado de si e de seus próprios familiares. No contexto da pandemia de coronavírus, a vulnerabilidade do trabalho doméstico se amplia e pode ser estendida a um cenário de, pelo menos, uma dupla vulnerabilidade, o qual será tratado em mais detalhes na seção seguinte. O primeiro eixo está no tipo de trabalho realizado por essas mulheres e nas condições em que este se realiza, que as expõe, de forma muito intensa, à circulação do vírus. É preciso ter em mente que essas trabalhadoras atuam no interior de domicílios que não são os seus, lidando com corpos e com movimentos que estão fora de seu controle. Se a maior fonte de transmissão do vírus é por meio do contato social e das partículas expelidas pelos corpos humanos, o trabalho dessas mulheres, que demanda obrigatoriamente contato intenso entre as pessoas que habitam no domicílio e também com seus objetos, as expõe diariamente ao contágio, ainda mais porque não existe a possibilidade de controlarem os movimentos, as saídas e a qualidade do isolamento social de seus empregadores. Na verdade, ao serem mantidas em suas funções rotineiras no contexto da pandemia, rompe-se o isolamento social tanto da família contratante do trabalho doméstico quanto da família da própria trabalhadora. É, portanto, fonte de potencial circulação e disseminação do vírus. Este tema será tratado em mais detalhes na subseção 3.2. O segundo eixo dessa vulnerabilidade está na falta de proteção social e na impossibilidade dessas trabalhadoras de buscarem no Estado apoio, seja para reposição da renda, caso sejam demitidas (seguro-desemprego), seja no caso de ficarem doentes e precisarem se afastar do trabalho (auxílio-doença). Como demandar isolamento social de trabalhadoras que, na grande maioria dos casos, não possuem vínculos formais de trabalho e, portanto, não possuem garantia alguma de manutenção da renda? As alternativas ofertadas pelo auxílio emergencial e, em menor medida, pelo benefício emergencial de preservação do emprego e renda, disponibilizadas pelo governo federal, tornam-se, assim, possibilidades importantes para essas mulheres, o que será discutido mais detalhadamente na seção 3.2. Na seção 4 deste texto, por fim, serão apresentadas algumas considerações finais, incluindo algumas sugestões de ações que podem ser adotadas para ampliar a proteção desse conjunto de mulheres que é responsável por prover serviços de cuidado não apenas a seus empregadores, mas também a suas famílias. O risco de contaminação dessas mulheres, ampliado pelo tipo de trabalho que exercem, não apenas as coloca em risco, como também toda uma rede de proteção e de cuidados pela qual são responsáveis no espaço de suas próprias famílias. Medidas como priorização para testagem da Covid-19 e ampliação do tempo de acesso ao benefício emergencial são brevemente discutidas ao final deste documento. Antes, porém, uma breve análise sobre os impactos da pandemia sobre o trabalho doméstico e de cuidados realizado de forma não remunerada pelas mulheres será apresentada na próxima seção.
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