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Reordenamento dos Serviços de Acolhimento de Crianças e Adolescentes e Implementação de Novas Modalidades – Família Acolhedora e Repúblicas (2010-2018)
Este relatório tem como objetivo analisar a situação atual e a trajetória dos serviços socioassistenciais de acolhimento voltados para crianças e adolescentes e para os jovens que atingem a maioridade nesses serviços. Os serviços de acolhimento institucional (SAIs), família acolhedora e de repúblicas são ofertados, financiados, regulados e executados no âmbito da política de assistência social. Os dois primeiros atendem a crianças e adolescentes que tiveram direitos ameaçados ou violados e que estão sob medida protetiva de acolhimento, aplicada por autoridade judiciária1 em casos nos quais as famílias/ responsáveis se encontrem temporariamente impossibilitados de cumprir sua função de cuidado e proteção. O serviço de repúblicas, por sua vez, abrange grupos de jovens que foram desligados dos serviços de acolhimento por terem alcançado a maioridade. Cabe destacar que a medida protetiva de acolhimento possui caráter provisório e excepcional, tendo-se em vista o objetivo precípuo de promover o retorno ao convívio familiar e comunitário na família de origem, ou, se esgotadas todas as possibilidades nesse sentido, o encaminhamento para família substituta,2 mediante procedimentos legais que garantam a defesa do superior interesse da criança e do adolescente. A proteção da criança e do adolescente e seu reconhecimento como sujeito de direito teve como marco tanto a Constituição Federal de 1988 (CF/1988) quanto a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei no 8.069/1990 (Brasil, 1990). Com o estatuto, deixa de ser sustentado legalmente, como causa de abrigamento, o princípio da situação irregular. Esse princípio “englobava os casos de delinquência, vitimização e pobreza das crianças e dos adolescentes, além de outras hipóteses extremamente vagas, que autorizavam a atuação amplamente discricionária do Juiz de Menores” (Leite, 2005, p. 12-13). Isso alterou o patamar das discussões entre governos e a sociedade civil sobre o necessário aperfeiçoamento das políticas públicas relacionadas ao acolhimento desse público, colocando na agenda o superior interesse da criança e do adolescente e a questão de como implementar a nova legislação. Em 2004, a pesquisa elaborada pelo Ipea e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda (Silva, 2004) sobre a realidade dos abrigos revelou a continuidade de situações de privações de direitos, com condições muito distantes das preconizadas pelo ECA mais de uma década após sua promulgação. O caráter de excepcionalidade da medida de abrigo (art. 101, § 1o do ECA) não era respeitado, sendo a institucionalização um recurso ainda utilizado de forma indiscriminada. O estudo apontou também que uma das principais causas para o abrigamento de crianças e adolescentes consistia na pobreza das famílias, ainda que o art. 23 do ECA determine que a carência de recursos materiais não constitua motivo para a perda ou suspensão do poder familiar. Ademais, mais da metade dos abrigados não apenas tinham família, mas também mantinham algum tipo de vínculo com esta. Apenas pouco mais de 10% estavam disponíveis para adoção. Aliás, o direito da criança e do adolescente era desrespeitado tanto em relação às possibilidades de retorno ao convívio familiar, quanto no que concerne à colocação em adoção. O tempo de acolhimento era excessivo, sendo que boa parte das crianças e dos adolescentes abrigados (52,6%) vivia nas unidades há mais de dois anos. Apenas 54,6% das crianças e dos adolescentes abrigados nas instituições pesquisadas tinham processo nas varas da Justiça, sendo provável que as demais estivessem acolhidas sem conhecimento judicial. Em suma, o serviço ofertado seguia de baixa qualidade, a pobreza continuava sendo motivo para o afastamento do convívio, e dificultava-se tanto o encaminhamento para adoção quanto o retorno à convivência com a família de origem, indicando um quadro de continuidade de ideias e práticas preconizadas pelo antigo Código de Menores revogado pelo advento do ECA em 1990. Segundo Pereira, Neris e Melo (2019), diversos estudos realizados ainda no século XX evidenciaram que instituições caracterizadas pelo isolamento social e por cuidados massificados eram incapazes de atender às necessidades de desenvolvimento de crianças e adolescentes, sobretudo no que diz respeito à provisão de vínculos afetivos significativos, estáveis e seguros. Essas e outras constatações evidenciaram a necessidade de direcionar o debate para além da adoção, buscando criar condições para garantir o direito de convivência familiar e comunitária. Foi nesse contexto que se elaborou o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNCFC), em 2006,3 ao qual se somaram as Diretrizes de Cuidados Alternativos para Crianças (ONU, 2009). Com grande envolvimento de atores governamentais e da sociedade civil, a criação do plano orientou-se pela prevenção do afastamento do convívio familiar e do rompimento dos vínculos familiares, pela qualificação dos serviços de acolhimento e pelo investimento no retorno ao convívio com a família de origem e, quando esgotada essa possibilidade, na colocação em adoção. O PNCFC apregoa o atendimento humano integral das crianças e adolescentes, por meio de políticas públicas articuladas com vistas à plena garantia dos seus direitos. Nessa perspectiva, reafirma o caráter transversal e intersetorial de suas ações que envolvem não apenas as políticas sociais, mas também o Poder Judiciário, o Ministério Público (MP), os conselhos tutelares e demais atores que integram o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA).4 Esse movimento permitiu, inclusive, que o Brasil assumisse posição de destaque no processo de elaboração das diretrizes da Organização das Nações Unidas – ONU (Yánez, 2016). As diretrizes contidas no plano desdobraram-se em diversas mudanças institucionais. Desde então, alterou-se a redação do ECA5 em vários pontos – por exemplo, a exigência de celeridade nos procedimentos de acompanhamento contínuo da situação de crianças e adolescentes acolhidos, de modo a evitar que a permanência no serviço de acolhimento se estenda para além de dezoito meses; a atualização quanto à nomenclatura dos serviços de acolhimento (de programas de abrigo para serviços de acolhimento institucional); a previsão da modalidade de acolhimento familiar em preferência à modalidade de acolhimento institucional; entre outras. A pesquisa realizada pelo Ipea e pelo Conanda (Silva, 2004) e as diretrizes, os objetivos e as estratégias do PNCFC inspiraram, em 2009, a definição de Orientações Técnicas (2009) para o funcionamento dos serviços socioassistenciais de acolhimento, cuja elaboração foi subsidiada pelos resultados das atividades do Grupo de Trabalho Nacional Pró-Convivência Familiar e Comunitária (GT Nacional) e pelos debates em diversos espaços, incluindo-se as conferências estaduais e Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente realizadas em 2007.6 Naquele mesmo ano, o então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) – atual Ministério da Cidadania (MC) –, com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Ministério da Saúde (MS), deu início a um novo estudo que permitiu a identificação dos aspectos mais relevantes da estruturação da oferta dos serviços acolhimento: o Levantamento Nacional de Crianças e Adolescentes em Serviços de Acolhimento (Assis e Farias, 2013). Esse estudo, por sua vez, contribuiu para a construção de um processo de monitoramento dessas unidades via o Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas) e a definição de diretrizes a serem adotadas no processo de reordenamento e regionalização da oferta desses serviços.7 O monitoramento do processo de expansão qualificada das unidades de acolhimento tem sido feito com base nas informações coletadas no questionário do Censo Suas, preenchido anualmente por gestores estaduais e municipais da assistência social, com a finalidade de subsidiar o planejamento de ações direcionadas aos serviços de acolhimento para crianças e adolescentes, bem como orientar o aperfeiçoamento da gestão e da qualidade de serviços e benefícios socioassistenciais prestados à população como um todo. Considerando o horizonte de implementação do plano de ação do PNCFC até 2015,8 a Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS), do MC, e a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNDCA), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), iniciaram o planejamento de estratégias para a avaliação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária, com vistas à sua posterior atualização. Com o trabalho de outros atores, a parceria firmada entre a SNAS e o Ipea em 2019 tem permitido o desenvolvimento de ações que integram a avaliação do plano, no sentido de consolidar os avanços obtidos, assim como atualizar as estratégias do PNCFC diante dos novos desafios para a garantia da convivência familiar e comunitária de crianças e adolescentes. Este relatório visa contribuir com uma das dimensões dessa avaliação, a saber, o reordenamento dos serviços de acolhimento e a implementação de novas modalidades de acolhimento (famílias acolhedoras e repúblicas). Para tanto, a partir dos dados contidos no Censo Suas, analisa a estrutura e o funcionamento dos serviços de acolhimento institucional e dos serviços de acolhimento familiar (SAFs) para crianças e adolescentes, assim como das repúblicas para egressos dos serviços de acolhimento. A pesquisa dedica ainda uma seção ao perfil dos acolhidos nesses serviços. Por fim, discute como as análises realizadas podem subsidiar a atualização do PNCFC.
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